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"Criança não namora. Criança apenas brinca"

Como falar de sexualidade com as crianças em casa e na sala de aula? O assunto, delicado para muitos adultos ainda hoje, vai ser tema de uma palestra do pesquisador paulista César Nunes. Ele é um dos convidados do “Brincar”, o maior congresso sobre educação infantil do Espírito Santo, que vai de hoje (2) a domingo, no Sesc de Guarapari.

Professor da Unicamp (SP), com vários livros publicados, César defende que criança não deve ter “namoradinho” na escola. “Essa precoce sensualização e sexualização das brincadeiras de crianças não é natural. Criança não namora, criança convive, alegra-se e brinca”.

Nesta entrevista, veja o que o professor fala também sobre o acesso cada vez mais precoce das crianças às tecnologias.

Sobre o congresso, a novidade para este ano é a participação dos pais de estudantes no evento.

Como levar o assunto da sexualidade para dentro da sala de aula?

Somos pessoas dotadas de sexualidade. Ela está presente na sala de aula, pela própria identidade das crianças, dos adolescentes, dos jovens. O que precisamos é constituir uma mediação, uma narrativa, um jeito de falar com as crianças e adolescentes, com naturalidade, com dignidade e respeitos. Evitar a abordagem repressiva, mas evitar também a atual forma, banal e permissiva, de falar de sexualidade. Temos que ter uma mediação, humanista, científica, didática, criativa e esteticamente elevada. Já há inúmeros temas que facilitam a abordagem da sexualidade. O que eu sempre questiono é o reducionismo, reduzir a sexualidade a uma descrição fria dos “aparelhos reprodutores”, num acento biologista, carregado de condenações de natureza médica ou religiosa.

Como e quando os pais devem tratar do assunto?

Os pais deveriam tratar da sexualidade desde a gestação, pois abraçar, amar, contar estórias, explicar as origens das pessoas, acariciar, são informações que repassamos para os corpos ( e mentes e corações) de nossos filhos e filhos. A sexualidade supõe uma educação afetiva, a construção de uma imagem bela e correta de si mesmo. Essa tarefa começa desde que nossos filhos são gestados.

O que o senhor acha da criança que tem “namoradinho” (a) na escola? Há pais que estimulam isso, acham bonitinho...

Acho que é uma falta de conhecimento. E, muitas vezes, a passividade diante dos modelos sociais atuais. As crianças não precisam ser estimuladas a brincar de namoradinhos e namoradinhas. Há uma dinâmica toda própria no desenvolvimento da criança, na apropriação de símbolos, no domínio sensorial e motor, no desenvolvimento da fantasia, do pensamento e da linguagem. Criança tem que ter espaços e condições de proteção afetiva, de estimulação para as brincadeiras coletivas, para jogos, para convivências, e não a reprodução, fora de hora, de namoros, noivados e casamentos. Essa precoce sensualização e sexualização das brincadeiras de crianças não é “natural”. Significa colonizar a vivência da infância com categorias e realizações do mundo adulto. Criança não namora, criança convive, alegra-se e brinca.

Não tem como não falar do uso de tecnologias cada vez mais precoce.

As tecnologias digitais são uma evolução das sociedades atuais. Podemos nos comunicar, enviar dados, mensagens, fotos, músicas, a todos os lugares do mundo. Isso não é em si um mal. O que não podemos nos descurar é de perder outras dimensões importantes da vida, do desenvolvimento das crianças, dos adolescentes e dos jovens. Reduzir a vida aos jogos eletrônico, reduzir o conceito de lazer a isso, ver o mundo somente nos tablets, nos smartphones, ter relações sobre nas redes sociais etc. Eu acredito que devamos ensinar nossas crianças a viver a beleza da infância, a natureza, as flores, o céu, os espaços, as plantas, a cidade, as pessoas etc. Criar laços de pertencimento com a casa, coma rua, com a escola, etc. Assim, há uma prioridade no desenvolvimento das crianças: o desenvolvimento dos sentidos, a criação de espaços lúdicos, a segurança afetiva e espacial, o reconhecimento de referenciais próximos, a auto-imagem, entre outros, que só podem ser buscados nos grupos sociais presenciais, próximos. Criança não precisa de internet, nem de tablets, nem de celular. Criança precisa de atenção, conversas, jogos, abraços e rotinas amorosas.

Quais os riscos da exposição das crianças à internet?

Há muitos riscos para as crianças na Internet. Além daqueles que já identificamos como invasivos e potencialmente violentos, além da exposição, do aliciamento sexual, há o mais terrível dos males, perder a dimensão real da vida e a beleza da infância e da convivência, reduzindo as dimensões de seu existir ao mundo virtual. As crianças precisam de proteção e de educação para a percepção do mundo. A internet é um mundo sem limites.

A Academia Americana de Pediatria afirma que as crianças só deveriam ter acesso à tecnologia a partir dos 2 anos. O senhor concorda?

Eu não gosto muito de determinação de idades, como se houvesse uma mudança radical de um para o outro ano. Acho que seria melhor falar em ciclos, em tempos de longa duração. Acredito que a infância não se reduz a uma faixa etária. Infância é uma construção de sentido, uma invenção cultural, uma quarentena de formação. Há muitas crianças que estão com 3, 5 ou 9 anos e nunca tiveram "infância" propriamente. Pois a infância é o tempo de cuidar, proteger, amar e conviver com as descobertas do corpo e do mundo. Se as crianças tiverem pais e mães que as acolham e estimulem, em passeios, caminhadas, teatros, bosques, parques e jardins, muito pouca atenção será dada às tecnologias atuais. São tecnologias competitivistas, bélicas, algumas vezes violentas, centradas em símbolos adultizados. Um ambiente familiar rico e uma escola dinâmica, como espaço de humanização e acolhimento, não há tecnologia que resista.

Como dosar isso com os filhos?

Acredito que a construção de sentido para as coisas tem que ser feita a partir da visão de mundo dos pais. Não construir nenhum filtro nos atuais modelo e mensagens das redes sociais significa deixar que as mitologias (narrativas) de consumo, de beleza, de poder e sexualidade eduquem seus filhos.

As brincadeiras estão perdendo espaço para a tecnologia?

As brincadeiras artesanais, coletivas, grupais estão perdendo espaço para a indústria cultural, para as brincadeiras eletrônicas, de jogos com alta dosagem de estimulação visual e digital. É um empobrecimento coletivo.

A escola está sabendo lidar com a tecnologia?

Não. Do mesmo jeito que as famílias não estão sabendo. Não há uma reflexão sobre como criar condutas éticas e estéticas para a apropriação tecnológica. As tecnologias são um bem, o atual modelo é que é consumista ( induz ao consumo), exibicionista ( induz à exposição pessoal demasiada), sem limites, coloniza todas as esferas da vida, reduza a importância da presencialidade e das relações reais. As tecnologias desenfreadamente consumidas produzem uma alienação intelectual e afetiva. E isso é uma deseducação, um mal-estar.

Pesquisadores americanos estão avaliando o impacto do uso de tecnologia pelos pais no comportamento dos filhos. O tempo em família está prejudicado pelo celular e tablet?

Não são os aparelhos nem os pais que são "culpados" por essa mudança na vida familiar cotidiana. São as relações de trabalho e de consumo, em processo vertiginoso de colonização de nossas vidas. Uma família de 4 pessoas que venha a sentar-se à mesa para uma refeição e todos estejam ligados aos celulares é uma tremenda falta de educação e de limites. A mesa é um lugar de convivência e de celebração da presencialidade.

A gente vê meninas e meninos virando blogueiros e youtubers, tornando-se verdadeiros artistas, com milhões de seguidores. O que o senhor acha desse fenômeno atual?

Trata-se de um fenômeno da mesma indústria cultural, a transformação da vida e de todas suas dimensões em mercadorias, expostas na grande vitrine virtual. Essas fábricas de celebridades, banais, artificiais e volúveis retratam a crise de visão de mundo, de valores e de condutas éticas que estamos vivendo. Para mim isso é sinal de submissão completa aos modelos de reprodução dos valores de mercado, falta de escola, falta de artes, falta de formação.


Fonte: Gazeta Online

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